10 setembro, 2009

só pra Ela

Ela secretamente não tinha apreço pelo romantismo, mas quando Ele subiu a escadaria do seu prédio encharcado pela chuva daquele domingo de manhã para lhe devolver o Leminski, Ela não pôde sentir nada menos que um carinho morno que subia do estômago até as faces e a fez lembrar de engolir a saliva. Foi aí que percebeu, sua boca estava seca e era tarde demais para repensar a aproximação que ambos se tinham permitido. Pensou em sã consciência: merda.

Ela não era dada às cores rosas que a vida propunha, nem aos grandes clássicos escritores. Gostava do Bukowski, o velho safado, da geração beat e dos poetas malditos. Sabia que ser uma mulher culta e gostar de tais escritores eram fatos que, para muitos, não se acompanhavam. Mas Ela não se importava. Não pelo cinismo dos jovens que dizem não achar necessária a aceitação do outro para aceitarem a si mesmos. Já que deste modo, cínico, eles buscam ser aceitos pelos descolados adeptos do "foda-se". NEla era verdadeira a desimportância com o senso comum, para o qual uma pessoa pensante não pode gostar de alguma música popular, de Bukowski ou Tropa de Elite.

Seus textos eram muitas vezes inocentemente escatológicos e escondiam seus medos, pudores, excitações, paixões e suas histórias, amores e ilusões, críticas e sugestões. Dissolvidos engenhosamente em seus personagens, vezes pela dificuldade de falar de si, vezes pelo fato de usar o "Ela" e "Ele" ser mais bonito esteticamente do que usar nomes próprios. O uso da primeira pessoa cria a primeira pessoa que lhe apontaria um dedo e ela poupava-se disso. Afinal, os textos eram dEla e neles Ela podia exercer seu poder de ser egoísta. E eles não precisavam de nome, qualquer excêntrico personagem pode ficar ridículo ao autor se chamar-lo de João ou Frederico. Ela gostava do poema cru e achava o dos novos baianos "se eu não tivesse com afta eu até faria uma serenata pra ela" a expressão mais puramente romântica. O resto era encher linguiça.

Mas naquele dia a chuva lhe trouxe Ele e o sentimento e o livro de Pablo Neruda. O poema da rosa de sal Ela pediria para Ele lhe recitar ainda por muitos dias, chuvosos, frios e quentes ou feitos quentes debaixo do cobertor, pra dizer assim no ouvido, baixinho e só pra Ela. E Ela escreveu, escrevia, escreve. Sempre ouvindo repetidamente alguma música sem deixar explícito. Depois da devolução do Leminski Ela escreveu histórias ao som de "Suburbano Coração", do Chico, encantada com a sonoridade e signo da letra encaixada em uma melodia confortável. Ela se sentia confortável porque a música era feita pra Ela, era dEla naquele momento. Era o belo sem ser rosa, o isento de virar roteiro de novela. Era ela colorida e sem vergonha. Ela virando no sofá, sofá virando cama. Pela primeira vez se deu conta que não era possível passar impune pela paixão das coisas que se encaixam nos defeitos dEla.
Papéis se romperam em palavras mudas:
...
... ,
...
Cheios de entrelinhas
Cheios de vida
Nasalados,
...
... !
...
Era o que Ela queria achar nas vidas alheias.
...
E assim foi secretamente, durante o tempo em que não era preciso se preocupar com literatura.