27 julho, 2010

Pães caseiros

Ela fazia poesias e pães caseiros. Ela usava a escada pra subir no telhado e sua mãe gritava saia já daí. Ela ouvia Bach e Brahms. E ela mentia. Ela mentia diariamente, uma aqui pra remendar um fato, outra ali pra não descobrirem a primeira mentira. E uma terceira pra juntar a primeira e a segunda de forma coesa. Ela não era nem um pouco coesa, chegava a ser hermética porque tinha orgulho de si mas não conseguia se aceitar o suficiente errante e pedante. Mais difícil ainda era conviver com a decepção dos outros em relação a ela, então ela mentia. Até que um dia, e foi um dia doloroso, ela magoou profundamente e exatamente pela mentira. Ela chorou, teve pena do magoado, teve pena de si mesma e subiu no telhado pra olhar as estrelas mais uma vez. Prometeu que nunca mais mentiria, nunca mais subiria na escada pra olhar as estrelas contra a vontade da mãe e passaria a escrever sobre coisas de verdade, não mais as ilusões de castelos e príncipes que ela nunca teria enquanto construísse um feudo cujos muros eram de mentira e o Senhor era ela. Desceu as escadas, foi pra máquina de escrever e escreveu um, dois e três dias inteiros a fio. Voltou pra primeira página e leu tudo. Releu, Releu. E chorou agora mais do que da vez da mágoa da mentira. Chorou por meses a fio. A sua escrita, sua vida, sem mentira, ela era tão pura que dava vergonha de ler, de viver.

22 julho, 2010

Compulsão

compulsão
de ter algo
aqui e agora
é vontade de artista
de expressar-se
sem demora
com
pulsão

21 julho, 2010

Eu morro

Tem susto que faz a gente lembrar que também morre.

Apesar de tudo, e além do mais, a gente também morre.

14 julho, 2010

do tema recorrente, outra vez mais uma

de tempos em tempos
me atenho a contar
um qualquer sobre as horas

nunca me atento
ao segundo à frente
de primeiro momento
disso sei, digo: que bosta
mas daqui a pouco, tão logo durma
volto a ele, aposta?

12 julho, 2010

Lucidez

"(...)Afirmam os dicionários que a testada é a parte de uma rua ou estrada que fica à frente de um prédio, e nada há de mais certo, mas também dizem-no pelo menos alguns, que varrer a sua testada significa afastar de si alguma responsabilidade ou culpa. Grande engano o vosso, senhores filósofos e lexicólogos distraídos, varrer sua testada começou a ser precisamente o que estão a fazer agora as mulheres da capital, como no passado o haviam também feito, nas aldeias, suas mães e avós, e não o faziam elas, como não o fazem estas, para afastar de si uma responsabilidade, mas para assumi-la. Possivelmente foi pela mesma razão que ao terceiro dia saíram à rua os trabalhadores da limpeza. Não traziam uniformes, vestiam à civil. Disseram que os uniformes é que estavam em greve, não eles."

(de Ensaio sobre a lucidez )

10 julho, 2010

fome

Fome de
dela de ele
fome de gente
que me surpreende
fome de gente
que me arrebente
eu tenho fome de gente
e por gente
quero ser comida
mastigada
deglutida
pra gente quero ser dada
por gente quero ser perdida
tenho fome de gente
que por mim
não possa ser medida

que nos foi

o corpo mole,
des
cende

de mim mesma
um quase ser, que
quase sente

porque nossa música já tá riscada no disco
mas eu ouço repetidamente
porque ela só se repete nos pontos principais
pra deixar bem claro
tudo o que eu não queria ouvir
mas ouço
re
petidamente
ela gritando cantante
re
pedindo
o que nos foi

06 julho, 2010

Choque

Quatro meninas dos olhos seguem-no da esquerda, lentamente, até a direita.
Fala polissilabicamente, monossilábicos são os dois. Consequentemente também não há pretensão nas quatro meninas. De um lado para o outro.
Lentamente.
As palavras dispensadas no ar por ele são rapidamente captadas pelos dois. As quatro pupilas se dilatam e se contraem de acordo com cada nuance cerebral que cada palavra provoca. Ele não usa parcimônias para dispensar palavras no ar. Com toda parcimônia são eles que não deixam palavra alguma ser perdida para o ar.
Rapidamente.
Os movimentos dele são decididos e impactantes de forma que os dos dois parecem acontecer dentro de uma bolha gelatinosa . Portanto, já é de se esperar quem vai vencer ao choque. No entanto, nos atemos a obervar o momento.
Até o choque.