20 novembro, 2008

2ª Construção

2ª construção da personagem do "Texto pra Dois"de Will Aziz

Ontem você chegou do trabalho quieto, entrou e me deu um leve beijo na boca.
Beijo seco na boca. Beijo seco na boca fria.
Foi para o banho e não cantou sozinho, não falou sobre seu dia nem perguntou sobre o meu. Não ficou nu na minha frente nem fez brincadeiras.
Sentou para comer e o fez em silêncio. Na casa só o barulho do telejornal que gritava horrores do mundo pra dentro do nosso aconchego. Nosso antigo aconchego. Nosso antigo "nosso".
Enquanto você comia, pela periferia do que eu via, já que o centro era sempre a tv, notei que algumas vezes você me olhou e até pareceu por algum momento querer dizer algo. Fez mais barulho com os talheres, como se isso me chamasse atenção para o fato de você estar lá e parecendo querer minha presença na mesa. Foquei mais ainda o olhar na tv, porque esperava um pouco mais de esforço da sua parte, uma palavra, um chamado carinhoso ou indecente... fiz-me mais compenetrada esperando que ao menos você me xingasse por não te dar atenção. Continuou em silêncio até terminar de comer.
Senti raiva de você, mas quando te vi ir para o quarto olhando para mim (apesar de um olhar sem expressões ou intenções) alguma esperança me fez desligar a tv e te acompanhar.

Deitei esboçando sons nos objetos, com medo que o silêncio dali denunciasse minha pulsação. Desejo.

Tentei me aconchegar nos seus braços, você deixou. Te acariciei e você me deu um beijo na cabeça. Quando passei a minha perna pelas suas e tentei um beijo em seu pescoço, você fechou os olhos levemente. Tossiu. Virou-se de lado.

Eu dormi quieta e longe de você, com medo que nossa estaticidade denunciasse que eu tremia.
Raiva.

19 novembro, 2008

1ª Construção

Construção da personagem do "Texto pra Dois" de Will Aziz

O nosso texto começou assim : pra dois. Eram nosso os dias, a casa e a cama. Éramos dois nas ruas vendo vitrines e sendo vistos por olhos de inveja. Nossas risadas, eram muitas, agrediam os menos sensíveis ouvidos e nossa expressão, os mais cegos olhos.

Agora você se perde em seus problemas e me obriga a me perder nessa casa vazia e nessa cama fria. Você chega do inferno de lá de fora e não tem ao menos coragem de explodir na minha cara o que te irrita. Você não tem por mim paixão ou raiva, e é isso que me insulta. É isso que me afunda ainda mais no passado enterrado nesse baú.
E mais do que ninguém, você sabe que esperar quieta não é do meu feitio. Você me viu e me amou forte e densa, firme e corajosa.
Agora não sei... O seu silêncio está silenciando minhas vontades. Ao menos é isso que me parece ser sua intenção. E eu não vou deixar. Não vou permitir que você silencie a mim também, como fez com essa casa, essa cama.. Não vou perder minhas expressões nas suas, como você faz dia-a-dia eu me perder nesse espelho, que nada diz além de que envelheço com você. Ao mesmo tempo que você, pois duvido que ainda sejamos juntos.
Não sei o quanto é do meu cansaço e quanto é culpa sua. Até porque houve um dia que você me trouxe flores, e eu resisti.
A culpa também é minha, não pelo silêncio, mas pela minha dureza se espalhando nessa cama e na imagem desse espelho.
Eu não quero esperar sozinha o dia em que você acabar-se, ao meu lado sem ser meu. Eu não vou esperar o meu fim. Se é pra ser um fim, que seja forte como eu. Que grite, como grita meu corpo a cada dia.

06 novembro, 2008

Comum

Ana gostava de Pedro, mas não gostava que Pedro gostasse daquele livro. Quando ele sentava a beirada da cama pra ler, ela sentia como se visse Pedro acariciando outra.
Pedro gostava de sentar a beirada da cama para ler aquele livro porque achava que era preciso uma posição peculiar para ler aquelas idéias tão peculiares sobre uma medicina alternativa, não menos peculiar.
Ana não gostava quando Pedro ouvia música, em vez de ouvir o que ela tinha para lhe falar. Mas o que a irritava mais que aquela música era aquele olhar perdido de Pedro.
Pedro gostava de ouvir essas e outras músicas porque ficava pairando os tímpanos em padrões (ou falta deles) que pareciam conversar com ele muito mais (e além) do que a letra da música em si, e a fala dela.
Ana não gostava quando ele ficava a beira da janela olhando o movimento da esquina da rua 15 com a 23 de setembro. Hora ou outra poderia ver passar aquela muito mais cheia de graça do que ela e, louco como era, poderia se jogar e se estatelar no chão da esquina porca.
Ana não gostava daquele cruzamento de ruas. Era seco e sempre tinha um sorveteiro cantarolando alguma coisa, que ela nunca decifrava porque quando se aproximava o sorveteiro parava de cantar e passava a canta-la.
Pedro gostava de olhar a movimentação das vendas do sorveteiro, porque naquilo criava algumas teorias interessantes sobre a economia mundial e a publicidade e propaganda. Um dos orgulhos dele, e assunto para todas as rodas de cerveja da qual participava, era a teoria que ele criou sobre mulheres em comerciais de cerveja quando viu Ana passar pelo sorveteiro...
Pedro gostava de assistir jornal nacional para ver o novo penteado da Fátima Bernardes e a risadinha prelúdica do Bonner.
Ana não gostava quando Pedro assistia jornal nacional, porque ele ficava sorrindo embestado e não via que ela estava cheirosa posta à cama.
Pedro gostava de ir à praia para ver as ondas crescerem.
Ana não gostava de praia porque o biquini delineava seus culotes.
Ana era uma mulher comum. Ana tinha medo de perder Pedro.
Pedro deveria ser o alguém comum. Pedro não tinha medo de se perder por aí.