27 agosto, 2009

Coração de pai não nega nada pra filho

(texto meu, Adaptado por Hilde Buzzá e Ricardo Piazza )

UMA MESA. UMA MULHER E UM HOMEM SENTADOS FRENTE A FRENTE.
ILUMINAÇÃO: UM ABAJUR.
O HOMEM ESTÁ MUITO INSEGURO, USA ÓCULOS E TEM APARÊNCIA FRÁGIL. APARÊNCIA DE PAI DE FAMÍLIA. OLHEIRAS. OMBROS CAÍDOS. TRANSPIRA E TREME.
A MULHER ESTÁ BASTANTE SEGURA, CALMA, PRÓXIMA.

Ele:
Não, eu juro que eu não sei nada.

Ela:
Olha só, tenta. eu sei que você vai conseguir.

Ele:
O que você quer que eu faça? Invente histórias, é isso que você quer?

Ela:
Não. Eu sei o quanto isso é difícil pra você. Sei o quanto é complicado relembrar algo que te faz sofrer tanto, mas a gente precisa estar juntos pra descobrir a verdade.

Ele:
Eu não lembro. Era uma noite normal. Não tinha algo especial que marcasse aquela noite. A não ser..

Ela:
Isso, fale mais sobre ela. Quem sabe isso clareia sua memória

Ele:
Eu não vou falar sobre eles, não é justo. Aqui?! Ele merece respeito.

Ela:
Merece sim, eu concordo. Merece nosso respeito, e... você não acha que descobrir a verdade é o mínimo de respeito que ele merece?

Ele:
Olha, eu não sei o que aconteceu. Eu estou sofrendo e ninguém respeita minha dor. Ninguém estava lá quando eu vi o caixão descendo pra terra. Você não estava lá, eles não estavam lá. Foi em mim a dor, em mim. Você já viu isso acontecer com a sua família?

Ela:
(séria)Eu nunca faria aquilo com a minha família.

Ele:
Como?

Ela:
(voltando pra intenção anterior)
Nada. Vamos pensar. Alguém que não gostasse dele. Ou de você.

Ele:
De mim?

Ela:
É, alguém que poderia se vingar.

Ele:
E você acha que eu colocaria ele em risco? Eu?

Ela:
Não intencionalmente, claro. Mas certas coisas escapam do nosso controle. É comum, às vezes você não teve culpa alguma.
Eu não sei! Eu não sei. Que tormento. Por que isso? Você já teve filhos? Já teve a sensação de ser responsável pela felicidade de alguém? Não, não teve. Você não sabe o que é esse amor. Eu sei o que é amar! Eu sei o que é sofrer por amor.

Ela:
Sei que você sabe como é. Sei que foi um bom pai durante a vida dele.

Ele:
Eu fiz meu papel

Ela:
Você fez seu papel. Eu realmente nunca tive filhos. Acho uma traição.

Ele:
Do que está falando?

Ela:
Uma traição a nós mesmos. À nossa dignidade entende? Quando a gente tem esse amor todo que você disse, a gente acaba fazendo coisas que não deveria, pela felicidade dele. Não é verdade?

Ele:
É.

Ela:
E...Ah... crianças. Essas criancinhas. Não medem nada, nada! Até matam por um pirulito, pode acreditar. Tudo. Sem medir conseqüência, eles não moram nesse mundo, o das conseqüências. Então fazem tudo, tudo pra conseguir o que querem. Manha, bico, choro, olhos cravados na gente, pronto pra matar. Prontos pra matar.

Ele:
É... criança é o bicho.

Ela:
Criança não é inofensiva não. É criança destruindo mãe: suga o corpo dela durante nove meses, a praguinha. Secando o corpo dela enquanto mama. Dissolvendo os pais, pouco a pouco, com sorrisinhos. Por todos os lados. Sorrisos, balas, doces e manhas.

Ele:
(tomando um ar mais forte, firme, tomando postura)
É, quase coisa do diabo. Como uma coisinha daquelas, uma coisinha só. Parece tão inocente. Com aquele olharzinho. Mentira que toda criança é doce.

Ela:
(ela começa a tomar tom insinuante)
Aquele olharzinho! De quem quer alguma coisa....

Ele:
(atormentado)
É! Aquele olharzinho...

Ela:
Aquele olhar de quem quer alguma coisa...

Ele:
Quer alguma coisa. Eu não gostava não, sabe. Estranho. Criança sem vergonha, sem vergonha. Falava: sai menino. Sai. Sou seu pai.

Ela:
Mas eles nunca ouvem. Fazem tudo outra vez. Sorrisos, doces, bala, manha, bico. Bico e aquele olhar dissimulado.

Ele:
Aquele olhar dissimulado.

Ela:
Querendo brincar: (imitando criança) me leva pra brincar??

Ele:
É!!!!

Ela:
(fazendo gestos sexuais)
Pulando no cavalinho. Pulando, pulando. E pai obedece. Coração de pai é mole!

Ele:
Coração de pai é mole.


( falas são ditas atropeladas, o homem torna-se animalesco e os dois representam um estupro)

Coração de pai não gosta de negar nada pro filho.

Coração de pai não gosta de negar nada pro filho.

Coração de pai não gosta de negar nada pro filho.

Coração de pai não gosta de negar nada pro filho.

Não gosta de negar nada pro filho.

Ela:
Pulando no cavalinho: pai. Vem comigo brincar, não era assim?

Ele:
Era! criança do demônio. Maldita, bandida, sem vergonha.

Ela:
E coração de pai não nega nada pro filho.

Ele:
E coração de pai não nega nada pro filho. E coração de pai não nega nada pro filho.
(agarra a mulher)
Não nega... Não nega...

(entram alguns homens, simulam uma “prisão” do homem. E ela grita enquanto ele sai)

Ela:
Você vai apodrecer aqui, seu filho de uma puta. Você vai apodrecer aqui.

Um comentário:

Filippe F. Cosenza disse...

Ó, que cena linda.
Dramaturgazinha cuti cuti do papis.

Continue assim, nega. Sugaremos sua alma textual (e sensual) até você publicar um livro! =)

E tenho dito!

BEIJO