06 novembro, 2008

Comum

Ana gostava de Pedro, mas não gostava que Pedro gostasse daquele livro. Quando ele sentava a beirada da cama pra ler, ela sentia como se visse Pedro acariciando outra.
Pedro gostava de sentar a beirada da cama para ler aquele livro porque achava que era preciso uma posição peculiar para ler aquelas idéias tão peculiares sobre uma medicina alternativa, não menos peculiar.
Ana não gostava quando Pedro ouvia música, em vez de ouvir o que ela tinha para lhe falar. Mas o que a irritava mais que aquela música era aquele olhar perdido de Pedro.
Pedro gostava de ouvir essas e outras músicas porque ficava pairando os tímpanos em padrões (ou falta deles) que pareciam conversar com ele muito mais (e além) do que a letra da música em si, e a fala dela.
Ana não gostava quando ele ficava a beira da janela olhando o movimento da esquina da rua 15 com a 23 de setembro. Hora ou outra poderia ver passar aquela muito mais cheia de graça do que ela e, louco como era, poderia se jogar e se estatelar no chão da esquina porca.
Ana não gostava daquele cruzamento de ruas. Era seco e sempre tinha um sorveteiro cantarolando alguma coisa, que ela nunca decifrava porque quando se aproximava o sorveteiro parava de cantar e passava a canta-la.
Pedro gostava de olhar a movimentação das vendas do sorveteiro, porque naquilo criava algumas teorias interessantes sobre a economia mundial e a publicidade e propaganda. Um dos orgulhos dele, e assunto para todas as rodas de cerveja da qual participava, era a teoria que ele criou sobre mulheres em comerciais de cerveja quando viu Ana passar pelo sorveteiro...
Pedro gostava de assistir jornal nacional para ver o novo penteado da Fátima Bernardes e a risadinha prelúdica do Bonner.
Ana não gostava quando Pedro assistia jornal nacional, porque ele ficava sorrindo embestado e não via que ela estava cheirosa posta à cama.
Pedro gostava de ir à praia para ver as ondas crescerem.
Ana não gostava de praia porque o biquini delineava seus culotes.
Ana era uma mulher comum. Ana tinha medo de perder Pedro.
Pedro deveria ser o alguém comum. Pedro não tinha medo de se perder por aí.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mexe comigo, sempre.
Vejo um quase-Pedro quase todo dia quando olho o espelho.